Português

Relatório da Polícia Federal encobre papel de militares na tentativa de golpe de 8 de Janeiro

O ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, retirou em 26 de novembro o sigilo do relatório de 884 páginas da Polícia Federal (PF) sobre a tentativa de golpe de 8 de Janeiro de 2023 no Brasil.

A turba pró-Bolsonaro invadindo o Congresso Nacional em 8 de janeiro de 2023. [Photo: Marcelo Camargo/Agência Brasil]

O relatório indiciou o ex-presidente fascistoide Jair Bolsonaro e outros 36 membros de seu governo, 25 deles militares, pelos crimes de abolição violenta do Estado democrático de Direito, golpe de Estado e organização criminosa para “manter ... Bolsonaro no poder, impedindo a posse do governo legitimamente eleito” de Luiz Inácio Lula da Silva (Partido dos Trabalhadores - PT).

As revelações do relatório da PF levaram à prisão, em 14 de dezembro, do candidato a vice-presidente na chapa de Bolsonaro, general Walter Braga Netto. Como recentemente escreveu o WSWS, “a prisão de um general quatro estrelas não tem precedentes em um país onde até mesmo os crimes sangrentos da ditadura militar apoiada pelos EUA (1964-1985) ficaram impunes”.

A exposição pública da participação de militares de alto escalão na conspiração de um golpe fascista e a iniciativa de processar alguns deles é uma evidência da situação política explosiva no Brasil. Embora as disputas internas da burguesia brasileira estejam emergindo em uma luta política aberta, nenhuma de suas frações em conflito consegue apresentar uma solução de longo prazo ou muito menos progressista a elas.

O PT e a ala supostamente “democrática” da burguesia que representa estão promovendo uma resposta completamente falida à conspiração ditatorial de Bolsonaro e dos generais. Isso é exposto pelo próprio relatório da Polícia Federal, que foi elaborado para apresentar a tentativa de golpe como o trabalho de militares corruptos, ao mesmo tempo em que sugere que a instituição das Forças Armadas impediu que o golpe fosse bem-sucedido.

O relatório da PF concluiu “que desde o ano de 2019, [Bolsonaro e seus aliados] começaram a desenvolver ações voltadas a desestabilizar o Estado Democrático de Direito”. A principal alegação avançada por eles era que o sistema de votação eletrônica no Brasil poderia ser fraudado, o que por inúmeras vezes foi desmentido por especialistas.

Após a derrota eleitoral de Bolsonaro para Lula em outubro de 2022, eles elaboraram o plano “Punhal Verde e Amarelo”, que previa o assassinato o ministro do Supremo Tribunal Federal (TSE), Alexandre de Moraes, então presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), bem como o próprio Lula e seu companheiro de chapa, Geraldo Alckmin.

As evidências da PF sugerem que os assassinatos, programados para 15 de dezembro de 2022 e abortados no último minuto, tinham a intenção de desencadear a tomada de poder liderada por militares e a instalação de um “Gabinete Institucional de Gestão da Crise”. Bolsonaro e seus aliados planejaram criar essa junta por meio de um decreto, apelidado de “minuta do golpe”. Esse documento foi baseado em uma “interpretação anômala do art. 142 da CF [Constituição Federal]”, segundo a PF, que supostamente atribui um “poder moderador” às Forças Armadas para resolver conflitos entre os poderes constitucionais e garantir a “lei e a ordem”.

A Polícia Federal alega que o plano golpista de Bolsonaro fracassou “por circunstâncias alheias à sua vontade”, principalmente porque, segundo o relatório, “o então comandante, General FREIRE GOMES, e o Alto Comando do Exército rechaçarem o emprego da força terrestre para dar o suporte necessário ao então presidente JAIR BOLSONARO promover a ruptura institucional.”

O relatório da PF aponta que os três chefes das Forças Armadas se reuniram duas vezes para discutir a “minuta do golpe”, em 7 e 14 de dezembro de 2022. Apenas o almirante Almir Garnier concordou com o plano golpista, tendo sido o único chefe das Forças Armadas a ser indiciado pela Polícia Federal junto com o ex-comandante do Exército e ex-ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, que participou de ambas as reuniões.

A narrativa de que o general Freire Gomes e o Alto Comando do Exército foram os responsáveis para “salvar a democracia” no Brasil é claramente uma fraude. Enquanto o relatório da PF enfatiza particularmente a recusa do general Freire Gomes em aceitar o plano golpista que estava sendo preparado para o dia 15 de dezembro, ele deliberadamente ignorou seu papel ativo para o “evento disparador” de 8 de janeiro de 2023.

Paralelamente à conspiração para assassinar Lula, Alckmin e Moraes, os aliados de Bolsonaro instigaram e financiaram uma série de bloqueios de estradas e acampamentos em frente a instalações militares em todo o país exigindo uma intervenção militar para anular a eleição.

Os três chefes das Forças Armadas, incluindo o General Freire Gomes, apoiaram os protestos e acampamentos, incluindo um em frente ao Quartel General do Exército em Brasília.

Em 11 de novembro de 2023, eles publicaram uma nota defendendo as “manifestações populares” contra a eleição de Lula. Ainda segundo ela, as Forças Armadas têm um “compromisso irrestrito e inabalável com o povo brasileiro” e estão “sempre presentes e moderadoras nos mais importantes momentos de nossa história” - a alegação central da “minuta do golpe”.

Ao contrário de uma suposta coincidência entre o conteúdo da declaração dos chefes militares e o da “minuta do golpe”, está claro que o plano golpista estava sendo discutido ativamente com os chefes militares e o Alto Comando do Exército.

Segundo o relatório da PF, em 7 de novembro de 2022, dias antes da nota dos chefes das Forças Armadas, o general Mario Fernandes, ex-secretário-executivo da Secretaria-Geral da Presidência da República e autor do Plano “Punhal Verde e Amarelo”, enviou uma mensagem ao general Freire Gomes, dizendo: “as atuais manifestações tendem a recrudescer, propiciando eventos disparadores a partir da ação das Forças de Segurança contra as massas populares”. Tal “evento disparador” viria a acontecer em 8 de janeiro de 2023.

De maneira crítica, o general Freire Gomes também impediu que os acampamentos em frente às instituições militares fossem desmantelados no final de dezembro de 2022. Em resposta à ordem do então comandante militar do Planalto, general Gustavo Henrique Dutra, para acabar com o acampamento em frente ao QG do Exército em Brasília, de onde sairia grande parte da turba fascista que atacou os três poderes em 8 de janeiro de 2023, o general Freire Gomes o chamou de “irresponsável” e “inconsequente”.

Todos esses fatos cruciais não passaram desapercebido pelo relatório da PF, que afirmou que, entre outros fatores, a “deliberada inércia de integrantes das Forças Armadas em não dissipar as manifestações que ocorriam em frente a instalações militares alimentou a expectativa de que um golpe militar era iminente, tendo como seu epílogo a materialização nos atos do dia 08 de janeiro de 2023”.

No entanto, o relatório da PF omite o papel ativo do general Freire Gomes. Essa aparente contradição, um dos elementos mais importantes para dissociar o Alto Comando do Exército e as Forças Armadas com um todo da tentativa de golpe, foi abordada numa reportagem da Folha de S. Paulo de 29 de novembro, que também chamou a atenção para uma mudança de atitude da Polícia Federal em relação ao general Freire Gomes.

Intitulada “PF minimiza nota e muda tratamento a ex-chefe do Exército, que vai de suspeito a escudo contra golpe”, a reportagem diz que a primeira versão do relatório da Polícia Federal “ainda dava importante peso à nota pública assinada pelos comandantes das três Forças em 11 de novembro de 2022”.

Porém, na sua versão final, “não há menção à suspeita de omissão diante da trama golpista, a nota de 2022 é tratada de forma lateral, e a resistência do general é descrita como a principal razão para que Bolsonaro não tenha levado a cabo a tentativa de golpe”.

No início deste ano, a Polícia Federal também apontou em um relatório sobre a investigação do golpe de 8 de Janeiro que, “considerando a posição de agentes garantidores, é necessário avançar na investigação para apurar uma possível conduta comissiva por omissão pelo fato de [o general Freire Gomes e o tenente-brigadeiro Batista Júnior] terem tomado ciência dos atos que estavam sendo praticados para subverter o regime democrático e mesmo assim, na condição de comandantes do Exército e da Aeronáutica, quedaram-se inertes”. Nesse mesmo sentido, a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do Congresso brasileiro, cujo relatório foi publicado em outubro do ano passado, pediu o indiciamento do general Freire Gomes.

O golpe seria consumado em 8 de janeiro de 2023 com um decreto de operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) diante da incapacidade de as Força de Segurança do Distrito Federal deterem a invasão às sedes dos Três Poderes.

Na época, o secretário de Segurança do Distrito Federal era o ex-ministro da justiça do governo Bolsonaro, Anderson Torres, que permitiu que a turba fascista chegasse às sedes dos Três Poderes sem resistência da Polícia Militar do DF. Um dos indiciados pela PF, Torres foi também um dos autores da “minuta do golpe”.

Por sugestão do ministro da Defesa do governo Lula, José Múcio Monteiro, 2.500 tropas estavam prontas para a operação de GLO. Lula, porém, recuou, dizendo dias depois que “aí sim estaria acontecendo o golpe que as pessoas queriam. O Lula deixa de ser governo para que algum general assuma o governo.”

A intenção de usar a invasão às sedes dos Três Poderes como “evento disparador” foi também corroborada em mensagem no celular do ex-ajudante de ordem de Bolsonaro, o tenente-coronel Mauro Cid. Segundo o relatório da PF, “Na tarde do dia 08 de janeiro de 2023, MAURO CID começou a receber fotografias dos atos que ocorriam na Esplanada dos Ministérios enviadas por sua esposa, GABRIELA CID. Em resposta, MAURO CID afirmou que caso o Exército brasileiro [EB] saísse dos quarteis, seria para aderir ao Golpe de Estado. Diz: ‘Se o EB sair dos quarteis...é para aderir.’”

A pressão sobre o Alto Comando do Exército

Fazia parte fundamental do plano do golpe a pressão para que o Alto Comando do Exército aderisse a ele. Isso incluiu o próprio 8 de Janeiro, que, segundo o relatório da PF, tinha “o objetivo de cooptar a adesão das Forças Armadas para consumar o Golpe de Estado” diante da incapacidade de ação do governo Lula e da necessidade de os militares restabelecerem a ordem.

O general Fernandes também foi um dos articulares para que o plano golpista tivesse o apoio do Alto Comando do Exército. A principal maneira de pressionar o Alto Comando do Exército era através dos protestos e acampamentos em frente às instituições militares exigindo uma intervenção militar. Com isso, eles queriam repetir o que aconteceu no golpe militar de 1964 apoiado pelos EUA contra o presidente nacionalista burguês João Goulart.

Segundo o relatório da PF, ele escreveu em 4 de novembro de 2022 ao general Luiz Eduardo Ramos, ex-ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, sobre a necessidade de “inflamar a massa” e que “ela se mantenha nas ruas”, pois “talvez seja isso que o Alto Comando, que a Defesa quer. O clamor popular, como foi em [19]64”.

Depois da derrota eleitoral de Bolsonaro, o general Braga Netto foi cogitado para assumir o ministério da Defesa com o objetivo de pressionar o Alto Comando do Exército a aderir ao golpe. Ele tinha deixado o Alto Comando em 2 de abril de 2022 para se lançar candidato a vice-presidente.

Resumindo a situação do Alto Comando do Exército, o coronel reformado Reginaldo Vieira de Abreu, ex-chefe de gabinete do general Fernandes, disse em um áudio obtido pela Polícia Federal que, dos 16 generais quatro estrelas do Alto Comando, “Cinco não querem, três querem muito e os outros zona de conforto”.

Isso está longe de significar que o Alto Comando foi contra a tentativa de golpe. Numa entrevista em 28 de novembro ao podcast Café da Manhã, o professor de História do Brasil da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Carlos Fico, declarou: “Na história brasileira tem um padrão recorrente .... que é o seguinte: os golpes, tentativas de golpes, pronunciamentos militares, eles se iniciam num pequeno grupo de militares mais afoitos. A maioria dos oficiais, sobretudo oficiais generais, permanece mais ou menos na expectativa para ver o que acontece e quando esse grupo inicial é bem-sucedido, aí há uma adesão paulatina.”

Esse “padrão recorrente”, segundo ele, “é que me faz ver com certa cautela a leitura segundo a qual o Alto Comando do Exército, por na sua maioria não ter aderido aos planos golpistas, teria então garantido a democracia brasileira”.

As Forças Armadas do Brasil sempre justificaram o golpe militar de 1964 e a ditadura sangrenta de 21 anos que o seguiu. Durante todo o governo Bolsonaro (2019-2022), ele próprio um defensor caloroso do regime militar, elas comemoraram anualmente a assim chamada “revolução de 1964” como um “marco para a democracia” contra a “ameaça” do comunismo.

Como deixou claro a declaração de 11 de novembro de 2022 dos chefes das Forças Armadas, existe um consenso de longa data das Forças Armadas como “poder moderador” no Brasil. Na Assembleia Constituinte de 1988, seus membros pressionaram os deputados constituintes, inclusive com a ameaça de um novo golpe, para que no artigo 142 fosse incluído que as Forças Armadas se destinam “à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Segundo o historiador Fico, “os militares se veem, desde ... a Proclamação da República [em 1899], ... com o direito de intervir na política, porque todas as constituições brasileiras, exceto a de 1937, ... lhes atribuem essa competência absurda, que é a de garantir os poderes constitucionais”.

Sem dúvida, essa também é a posição do Alto Comando do Exército. Se o ex-comandante do Exército, general Freire Gome, discordou do plano “Punhal Verde e Amarelo” que previa o assassinato do ministro Moraes, do presidente Lula e do vice-presidente Alckmin, isso não significa que não endossaria um plano menos brutal.

No Brasil e na América Latina como um todo, a resposta histórica das elites dominantes às crises políticas, sociais e econômicas tem sido recorrer aos militares para impor ditaduras brutais contra a classe trabalhadora. Hoje, a crise do capitalismo brasileiro e mundial é muito mais profunda do que em 1964.

Se o golpe planejado após a derrota eleitoral de Bolsonaro não foi bem-sucedido, isso não significa que não haverá novas tentativas. Pelo contrário, os militares tiveram a oportunidade de aprender e corrigir os erros cometidos em relação aos eventos de 8 de Janeiro.

Loading