Publicado originalmente em inglês em 1˚ de março de 2025
Com a aproximação do Oscar 2025, que ocorre neste domingo, o filme Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, vem ganhando projeção crescente na vida cultural e política do país.
Mais de 5 milhões de brasileiros foram aos cinemas assistir ao filme, que já é a quinta maior bilheteria da história do país. O entusiasmo popular com sua indicação ao Oscar, onde concorre a três categorias, incluindo de Melhor Filme, um feito inédito para o cinema nacional, é um fenômeno talvez ainda mais massivo. Fantasias da atriz Fernanda Torres, que interpreta a personagem principal de Ainda Estou Aqui, foram apontadas como a tendência do Carnaval deste ano, com início no sábado.
Outras manifestações políticas mais sérias foram reportadas. Um usuário comentou no Reddit:
No Brasil, esse filme tocou o público de uma forma visceral que eu nunca tinha visto antes. Fui à primeira exibição em minha cidade e a sala estava lotada. Quando os créditos começaram a rolar, aplausos estrondosos irromperam e, entre as palmas, era possível ouvir muitas pessoas chorando. Vi até mesmo alguns espectadores mais velhos, que provavelmente viveram a época retratada no filme, levantando os punhos e gritando: “Ditadura nunca mais”. Foi um momento que foi além da tela e, pelo que vi nas redes sociais, essa mesma reação ocorreu nos cinemas de todo o país. Tinha que estar lá para realmente entender.
Descrito pelo WSWS como “um retrato sério da vida sob a ditadura militar no Brasil”, Ainda Estou Aqui narra a história do desaparecimento de Rubens Paiva, político do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) assassinado pelo regime militar no início dos anos 1970, e a subsequente luta por justiça de sua esposa, Eunice Paiva (interpretada por Torres).
O impacto massivo de Ainda Estou Aqui se cruza profundamente com os problemas políticos candentes que confrontam a sociedade brasileira. O sucesso do filme está indiscutivelmente ligado ao reconhecimento por camadas significativas da população de que a resolução da aguda crise política atual é impossível sem uma reavaliação séria da história do país.
Em particular, é visto como fundamental finalmente ter um acerto de contas jamais realizado com os crimes e o legado sombrio da ditadura militar de 1964-85, sentido hoje mais forte do que nunca.
Na semana passada, o ex-presidente Jair Bolsonaro e 33 aliados foram denunciados pela Procuradoria Geral da República (PGR) por tentar dar um golpe de Estado e abolir violentamente a ordem democrática no Brasil. Os acusados pela conspiração fascista que culminou na insurreição de 8 de janeiro de 2023 em Brasília são em sua maioria militares, incluído sete generais e ex-comandantes das Forças Armadas.
As forças fascistas, que articulam uma contraofensiva política em conjunto com o governo de Donald Trump nos EUA e se preparam para um novo golpe de Estado, não deixaram a repercussão de Ainda Estou Aqui passar em branco. O próprio Bolsonaro manifestou seu profundo desgosto com a popularidade alcançada pelo filme.
Em uma recente entrevista, questionado se também estava torcendo por um Oscar para o filme e a atriz brasileiros, o ex-presidente fascista torceu o nariz e declarou: “A mensagem ali é política. Ela [Torres] falou, por exemplo, que no meu governo não faria aquele filme”.
Deixando claro que não assistiu e nem assistirá ao filme, Bolsonaro cinicamente afirmou: “O filme tinha que começar comigo”. Ele explicou:
Olha só, família Paiva, você tem que falar em Eldorado Paulista, a minha cidade. Você tem que falar em maio de 1970, quando passou o [Carlos] Lamarca na cidade.... Por que que o Lamarca achou aquele local de guerrilha? Pode ser que não tenha nada a ver com o Rubens Paiva. Pode ser, mas é muito difícil não ter.
Um jovem oficial no período de transição ao regime civil, em meados dos anos 1980, Bolsonaro construiu uma carreira parlamentar com base em sua disposição a defender abertamente os crimes mais abomináveis e os torturadores mais notórios da ditadura. Em 2018, essa figura política grotesca foi elevada ao posto mais alto da República brasileira.
Em diferentes momentos, o ex-presidente fez alusões em discursos às suas origens no Vale do Ribeira, região mais pobre do estado de São Paulo, onde nasceu em 1955. Promovendo um mito sobre o despertar de trajetória política, Bolsonaro afirmou ter auxiliado, ainda adolescente, a operação militar que perseguiu Carlos Lamarca e seu grupo guerrilheiro ligado à Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).
Rubens Paiva, cujo “desaparecimento” é retratado em Ainda Estou Aqui, tem origens familiares em Eldorado Paulista, onde nasceu Bolsonaro. O pai de Rubens, Jaime Paiva, foi um proprietário de terras influente, que chegou a ser prefeito da cidade e, mais tarde, deputado estadual pela ARENA (Aliança Renovadora Nacional), o partido da ditadura militar. O filho seguiu um caminho diferente.
Desde os anos 1990, Bolsonaro alardeou a narrativa completamente fabricada de que Rubens Paiva – que foi detido pelos agentes da repressão em sua própria casa, no Rio de Janeiro – teria sido executado pelos combatentes da VPR. Em um discurso na Câmara, em 2012, ele afirmou: “Quando o Rubens Paiva foi detido pelo Exército, posto em liberdade, com toda a certeza, foi capturado e justiçado pelo bando do Lamarca e pelo bando da Esquerda, da VPR. E aí a culpa recai sobre as Forças Armadas”.
Durante uma cerimônia em 2014 que, reunindo familiares de vítimas da Ditadura Militar, inaugurou um busto de Rubens Paiva na Câmara dos Deputados, Bolsonaro protagonizou uma provocação fascista asquerosa. Aproximou-se e cuspiu na estátua, xingando: “comunista maldito”.
O ódio pessoal nutrido contra Paiva, um representante do reformismo burguês na história brasileira, cruza-se com a perspectiva política mais ampla encarnada por Bolsonaro. Essa visão, profundamente arraigada entre os militares, vê qualquer concessão social e democrática à classe trabalhadora como uma fraqueza inadmissível da classe dominante em meio a uma luta de vida ou morte contra a constante ameaça da revolução socialista.
Essas questões políticas foram levantadas em entrevistas recentes de Marcelo Rubens Paiva, filho do casal Paiva e autor do livro homônimo que deu origem a Ainda Estou Aqui.
Falando TV Democracia, num programa que foi ao ar na terça-feira, Marcelo notou ser falsa a afirmação de que “em 1985 os militares saíram do poder”. “Os militares nunca saíram [do poder]”, ele afirmou. “Nunca saíram das academias, nunca saíram dos IMLs (Instituto Médico Legal), nunca saíram do SNI (Serviço Nacional de Informação). O SNI se manteve intacto, a repressão se manteve intacta. Nenhum militar foi preso, entendeu? O cara que era do DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna) virou bicheiro de Niterói. A formação dos militares é igual, [daí] que veio a geração do Bolsonaro”.
Em outro ponto da entrevista, Paiva destacou a importância da descoberta de que a esposa do general reformado do Exército José Antônio Nogueira Belham foi assessora do gabinete de Bolsonaro durante seu mandato como deputado federal em 2003. Paiva afirmou:
Faz muito sentido. Você vê essa fixação que o ex-presidente tem com os torturadores; com os DOI-CODI; com o Brilhante Ustra, esse facínora, que era do DOI-CODI de São Paulo, que torturava mães, pais, filhos e crianças; e o General Belham, do DOI-CODI do Rio de Janeiro, onde meu pai foi preso.
Por que foi importante a história desse cara? Porque uma coisa que a minha família nunca entendeu... [é] por que a minha mãe e minha irmã foram presas no dia seguinte?... Foi depois de ver as táticas do que se cometia no DOI-CODI... que eu percebi que prenderam minha mãe e minha irmã para torturarem ela para o meu pai.... Só que meu pai, 24 horas depois, já estava semimorto, segundo algumas testemunhas.
Esse foi o espírito dos anos 1970 e esse foi o espírito trazido pelo governo anterior [de Bolsonaro] para o Brasil.
Belham, que foi apontado em 2014 pela Comissão da Verdade com um dos quatro militares responsáveis pela tortura e assassinato de Rubens Paiva, mas teve seu caso arquivado, permanece vivo e reside na Zona Sul do Rio de Janeiro. Na última segunda-feira, sua casa foi alvo de um “escracho” organizado pelo Levante Popular da Juventude, grupo político satélite do Partido dos Trabalhadores (PT).
Por mais que o próprio PT tenha buscado surfar na onda de popularidade de Ainda Estou Aqui, o ressurgimento da consciência e da revolta contra os crimes e os assassinos militares que permanecem impunes entra em colisão direta com os objetivos do governo de Luiz Inácio Lula da Silva de pacificar as relações com os militares fascistas.
Há cerca de um ano, no aniversário de 60 anos do golpe militar de 1964, o Grupo Socialista pela Igualdade (GSI) destacou a tentativa politicamente criminosa de Lula e seu governo de apagar a memória e diminuir a relevância política da ditadura militar.
Após cancelar qualquer evento público ligado ao aniversário, Lula declarou que o golpe “faz parte da história”, que os generais atuais “nem haviam nascido” em 1964 e que o povo brasileiro deve “saber tocar a história para frente, [ao invés de] ficar remoendo sempre, remoendo sempre”.
Em resposta, o GSI afirmou: “As declarações de Lula são extraordinárias à luz dos acontecimentos recentes. O nervosismo do governo burguês do PT sobre o tema é diretamente proporcional à relevância assumida pelas lições do golpe de 1964 para a classe trabalhadora brasileira e internacional diante da crise política atual.”
As implicações políticas de Ainda Estou Aqui ainda foram demonstradas num ataque sofrido por Marcelo Rubens Paiva em 23 de fevereiro, durante um desfile de pré-carnaval em São Paulo. Após ter sua presença anunciada no microfone, Paiva, que se locomove por cadeira de rodas e estava numa área cercada, foi vaiado por membros do público e atacado com uma lata de cerveja e outros objetos por um participante.
A relação entre o ataque a Paiva e as forças políticas fascistas em ascensão é evidente. Em outro trecho de sua entrevista à TV Democracia, o autor deixou claro que o sucesso do filme, não apenas no Brasil, está ligado ao desenvolvimento de uma crescente resposta política global contrária a este fenômeno.
“Essa família [a dele] acabou sendo o retrato de algo que está acontecendo no mundo inteiro. O fascismo ascendendo na Itália, a primeira-ministra tem inspirações fascistas, tem saudações fascistas agora em tudo quanto é manifestação”, disse Paiva. Ele citou ainda o ressurgimento da extrema-direita na França e Alemanha e declarou que “os Estados Unidos já estão vivendo uma ditadura”. Trump é “um verdadeiro ditador, que está interferindo já na política brasileira através do seu mascote, ou sei lá se ele é o mascote do Elon Musk. Na Argentina tem o Milei. É uma catástrofe que está acontecendo no mundo.... Então, a história de uma mulher que tem uma empatia do tamanho do país acaba seduzindo milhões de pessoas”.