A morte de uma professora em São Paulo após sofrer um infarto durante uma reunião pedagógica na semana passada trouxe à tona a intensa pressão e o assédio sobre os professores causados por programas pró-corporativos na educação.
Segundo o site ABC em Foco, Analu Cristina Cerozzi da Silva Vieira, da Escola Estadual Maria Carolina, em Diadema, na região industrial do ABC, “passou mal” quando questionava “o volume de cobrança sobre os profissionais da educação”. Levada ao hospital, ela não resistiu.
Enfrentando as mesmas condições intoleráveis de trabalho, milhares de professores revoltados de todo o Brasil lamentaram a morte da professora Analu. Uma postagem no Facebook do deputado estadual Carlos Giannazi, do pseudoesquerdista Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), recebeu mais de 7 mil reações e mais de 2 mil comentários, tendo sido compartilhada mil vezes.
A professora Jéssica escreveu nos comentários da postagem que “Analu Cerozzi era uma professora excelente, fazia o seu trabalho com maestria, não deixava nenhum aluno para trás. Sempre preocupada com a aprendizagem de seus alunos, dava seu melhor em sala de aula. Era querida por muitos, carinhosa, acolhedora e de um coração imenso. Uma mãe e esposa dedicada, companheira e amiga.”
Muitos professores também relataram situações semelhantes as que a professora Analu denunciava quando teve o infarto. Lúcia escreveu que, “Infelizmente a pressão psicológica acontece com frequência. Isso precisa parar. A busca por resultados que nem sempre são reais, fazem com que os professores vivam sobrecarregados e com esgotamento mental, perdendo a saúde e muitas vezes enfrentando uma depressão ou outras doenças invisíveis.”
Nos últimos dois anos, o governador de extrema direita de São Paulo, Tarcísio de Freitas e seu secretário de educação, Renato Feder, têm levado adiante um amplo programa pró-corporativo na educação que tem transformado o trabalho pedagógico dos professores. A enorme pressão para superar as metas estabelecidas, muitas delas inatingíveis, como relatado pela professora Lúcia, às custas das preocupações em torno da aprendizagem dos alunos tem levado ao desestímulo, frustração profissional e ao adoecimento de muitos professores.
A professora Tereza comentou que esse processo é ainda maior nas escolas de tempo integral (PEI) de São Paulo, que guardam muitas semelhanças com as “charters schools” implementadas nos EUA. Ela escreveu que “Passei mal numa escola PEI, fui direto para o hospital. Não suportava mais as cobranças e saí neste ano. Somos tratados feito escravas e se reclama, ouvimos: ‘ninguém é obrigada a ficar’. Absurdo”.
Eduardo, também professor de uma escola de tempo integral em São Paulo, disse ao World Socialist Web Site (WSWS) que a morte da professora Analu “não é simplesmente o produto de condições particulares da sua escola ou da sua vida.” O que aconteceu com ela, segundo ele, “expressa da forma mais brutal as condições enfrentadas pelos professores em toda a rede de ensino.”
Eduardo continuou: “Comecei a trabalhar recentemente em uma escola do PEI, e está claro que a maior prioridade é o alcance das chamadas ‘metas de desempenho’. Elas incluem desde a produção de vários documentos de planejamento de ensino, passando pelo registro de aulas – que precisa ser feito em um prazo de horas – até a garantia de um número mínimo de horas de uso em plataformas de ensino online pelos alunos. A cobrança pelo cumprimento das metas é feita em adição às demandas comuns da escola, como a correção de atividades e provas, o trabalho de lidar com problemas particulares dos alunos, entre outras.”
A escola tem se transformado em um ambiente de intensas cobranças, o que tem gerado episódios de assédio moral e intimidação por parte da gestão escolar e dos supervisores de ensino.
Essa pressão ficou evidente em um vídeo exibido aos professores no início do ano letivo, no qual o secretário Feder declarou que, neste ano, espera “resultado” dos alunos no SAEB e no SARESP – avaliações externas de nível nacional e estadual, respectivamente. Ele ainda acrescentou: “Diretor que não entregar [o resultado] está passível de ser cessado”. Desde então, gestores e supervisores têm reforçado essa exigência junto aos professores, afirmando com cada vez mais veemência: “Se estamos sendo cobrados, vamos cobrar vocês”.
Sobre isso, Eduardo disse que “os supervisores estão presentes três ou quatro dias por semana, aparecem sem qualquer aviso e são responsáveis por garantir que o ensino na forma determinada pela secretaria de educação esteja sendo cumprido”. Isso inclui o que eles chamam cinicamente de “apoio presencial”, a presença ostensiva de membros da gestão escolar e de supervisores nas aulas dos professores, o que pode fazer o professor mal avaliado ser demitido de uma escola de tempo integral.
Os professores de escolas de tempo integral também podem ser demitidos a partir do resultado da avaliação deles pelos alunos. Segundo Eduardo, isso cria na escola “não somente um ambiente intimidatório, mas também coloca todos os membros da comunidade escolar uns contra os outros”.
Ele explicou ao WSWS que escolas de tempo integral e programas pró-corporativos na educação têm sido impulsionadas desde o início da década passada por todos os partidos do establishment político, incluindo o Partido dos Trabalhadores (PT) do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Para Eduardo, o “impacto das políticas implementadas sob diferentes governos, que criaram condições precarizadas de trabalho, tem preparado a privatização das escolas públicas. Na prática, o que tem ocorrido é a criação de métodos de avaliação em massa para transformar o ensino público em um lucrativo empreendimento.”
Todo esse processo também está se desenvolvendo rapidamente nas escolas da rede pública municipal de São Paulo. Na eleição municipal do ano passado, o prefeito reeleito Ricardo Nunes (MDB) foi apoiado pelo governador Freitas e pelo ex-presidente fascista Jair Bolsonaro.
A coordenadora pedagógica Angela disse ao WSWS que “os profissionais da rede municipal ...têm resistido ao direcionamento que tentam impor à nossa rede, um caminho preocupantemente semelhante – senão idêntico – ao que levou à precarização da escola pública estadual.”
Segundo ela, “No ano passado já se percebeu um olhar mais atento da secretaria de educação aos resultados das avaliações externas e acompanhamento do trabalho docente, o que poderia ser de grande valia e suporte, se não fosse o fato de que este olhar está voltado para o controle das ações da equipe gestora e da escola, em uma concepção da instituição sob um aspecto econômico-administrativo.”
“Neste ano”, Angela continuou, “estamos assistindo, desde o início do ano letivo, a um fortalecimento deste olhar empresarial e técnico sobre a escola pública, com treinamentos, cobranças e controles sobre ‘metas’, além de exigências descabidas para qualquer situação educativa. Isso inclui a exigência de que nós alfabetizemos 100% dos estudantes dos segundos anos do ensino fundamental – desconsiderando as inúmeras variáveis que influem nos processos de alfabetização, como questões de vulnerabilidade social, violência, miséria e pobreza, estudantes com deficiência, dificuldades e transtornos de aprendizagem etc.”
Para ela, tudo se passa “como se a escola fosse uma empresa e os estudantes fossem meros números. ... As gestões das escolas que não alcançarem os índices esperados, ou seja, as metas da secretaria de educação, estão sendo ameaçadas de privatização.”
Os programas pró-corporativos na educação, segundo Angela, têm impactos particulares para o trabalho de todos na escola. Sob eles, “não há mais preocupações com formação pedagógica de coordenador ou docente, ou com as condições nas quais nossos profissionais estão sujeitos.” O professor passa a ser “um agente que reproduz um currículo estagnado e nada democrático, sendo ele a única pessoa e o único profissional responsável pelos ‘fracassos’ ou ‘sucessos’ dos estudantes.” Esses programas têm contribuído enormemente para o adoecimento dos professores.
Ela também chamou a atenção para “o alto número de professores e professoras que exercem funções em outros ambientes da escola que não as salas de aula”, os assim chamados professores “readaptados”. Apenas na escola dela, 7 dos cerca de 60 professores estão readaptados.
Segundo ela, esses professores são um “reflexo direto do aumento da precarização do trabalho docente, que pode ser caracterizado, entre outros, por condições de trabalho inadequadas, sobrecarga de tarefas, ausência de suporte institucional para questões de saúde física e mental, desvalorização profissional, número excessivo de estudantes por turma, alto índice de violência nas unidades escolares, além da falta de políticas eficazes de valorização e acompanhamento desses profissionais.”
Afastados de sala de aula principalmente por problemas de saúde mental, Angela disse que “Os readaptados representam uma frágil parte desse sistema, e, ao invés de estarmos submetidos a políticas públicas de atenção aos motivos dos processos de readaptação, com a intenção de, logicamente, minimizá-los e fortalecer a ação e identidade docente com condições dignas de trabalho, o que temos nos deparado é com ações governamentais ... que fragilizam ainda mais não apenas estes profissionais, mas toda a categoria.”
Concluindo, ela disse que “Estamos diante de um poder público que desconhece e desvaloriza nosso trabalho, além de atropelá-lo com projetos que, no fundo, só acirram a desigualdade social, só afastam os estudantes mais vulneráveis da escola, só promovem o empresariamento da educação.”
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