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Brasil enfrenta ameaça de surto histórico de dengue em 2025

Como parte de um amplo ataque à saúde pública no Brasil, toda a negligência criminosa que o país tem assistido na resposta à pandemia de COVID-19 tem servido como modelo para uma série de doenças tropicais endêmicas que causam um impacto devastador, especialmente na população mais pobre do país.

Equipe de Zoonoses faz trabalho de campo no combate aos focos da dengue em bairros de Osasco, na região metropolitana de São Paulo, em 15/03/2024. [Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil] [Photo: Paulo Pinto/Agência Brasil]

Esse certamente é o caso da dengue, uma doença negligenciada que já foi conhecida popularmente no Brasil como “febre quebra-ossos”, devido a seus sintomas severos que podem durar semanas e que causa milhares de mortes por ano. Ela também pode deixar inúmeras sequelas no infectado.

Em 2024, o Brasil teve o pior ano da dengue da história, com mais de 6,6 milhões de casos, 6.216 mortes confirmadas e outras 489 mortes ainda em investigação. Até o final de fevereiro, o Brasil já tinha registrado 440 mil casos de dengue, com 177 mortes confirmadas e outras 413 em investigação.

Assim como aconteceu no ano passado, o governo do presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva (Partido dos Trabalhadores – PT) está fazendo tudo o que pode para minimizar a situação da dengue no Brasil. Em 27 de fevereiro, o site do Ministério da Saúde comemorou que os casos prováveis de dengue diminuíram mais de 60% em comparação com o mesmo período de 2024.

Porém, inúmeras organizações de saúde e especialistas têm insistido que a situação epidemiológica da dengue em 2025 poderá ser pior do que a do ano passado. Em 7 de fevereiro, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) emitiu uma alerta epidemiológica depois que 23 países e territórios da região das Américas registraram 238.659 casos suspeitos nas primeiras quatro semanas epidemiológicas de 2025, sendo o Brasil responsável por 87% desses casos. Esses números são 249% mais altos do que no mesmo período do ano passado.

A OPAS também alertou sobre o aumento do risco de surtos de dengue nas Américas devido ao aumento da circulação do sorotipo 3, ou DENV-3, um dos quatro sorotipos do vírus. Ele já foi identificado em vários países da região, como Peru, Colômbia e México.

No Brasil, o DENV-3 foi detectado pela primeira vez em 15 anos no ano passado. Numa entrevista ao Estado de S. Paulo no início de fevereiro, o infectologista Alexandre Naime Barbosa, professor de Medicina na Universidade Estadual Paulista (Unesp) e coordenador científico da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), alertou que esse fato faz com que tenhamos “um grande número de pessoas suscetíveis” à dengue.

Ele mencionou uma pesquisa do final do ano passado que “mostrou que menos de 30% dos doadores de sangue em São Paulo tiveram contato com o vírus” da dengue, um número que é ainda menor entre crianças. Ainda segundo o infectologista Barbosa, “estou falando de ter contato, mas, se você tem dengue uma vez, pode ter de novo com os outros três sorotipos. A maioria das pessoas nunca teve dengue do tipo 3 e todo mundo é suscetível.”

Por isso, uma pessoa pode ser infectada pelo menos quatro vezes com o vírus da dengue, e os quatro sorotipos, segundo o alerta emitido pela OPAS, estão circulando simultaneamente no Brasil. Assim como acontece com a COVID-19, infecções subsequentes com outros sorotipos podem aumentar o risco de formas graves da doença. O DENV-3 foi especificamente associado a formas mais graves da doença, mesmo em pessoas que tiveram a primeira infecção com o vírus.

Diante dessa situação, o infectologista Barbosa alertou: “Não há dúvidas em dizer que 2025 vai ficar marcado – e não estou sendo alarmista ou pessimista. Será o pior ano de epidemia de dengue de toda a série histórica, não só no Estado de São Paulo, mas também no Brasil.”

De fato, São Paulo, o estado mais rico e populoso do Brasil, já registrou neste ano um total de casos suspeitos 50% maior do que na mesma época do ano passado. Ele lidera os números da dengue no Brasil, com 247 mil casos – mais da metade do total – e 136 mortes confirmadas, representando mais de 75% do total de mortes do país. Essa situação forçou o governo de São Paulo a decretar emergência para a doença em todo o estado em 19 de fevereiro. Em 2024, isso ocorreu no início de março.

Ao contrário do que alegam as autoridades do governo Lula, não tem havido nenhum combate efetivo a doenças infecciosas como a COVID-19 e a dengue no Brasil. Depois de o governo Lula e todo o establishment político brasileiro ter adotado a política de “COVID para sempre”, o mesmo se pode dizer em relação à dengue. Segundo o infectologista Barbosa na entrevista ao Estado, “a dengue ficou normalizada como uma doença com a qual a gente convive, e isso não é verdade. Hoje temos várias formas de mitigar, de diminuir o impacto da dengue.”

Ao contrário do que está acontecendo hoje, o conhecimento científico acumulado há muito tempo em relação à dengue já fez do próprio Brasil um exemplo internacional. Há mais de um século, está estabelecido que a transmissão da dengue se dá através da picada do Aedes aegypti. Esse mosquito também é o vetor de inúmeros vírus epidêmicos no Brasil e nas Américas, como o zika (causador da microcefalia), chikungunya e o da febre amarela.

Em 1969, o médico Odair Franco escreveu em seu livro História da febre amarela: “Quando, em 1935, ingressamos no Serviço de Febre-Amarela, não encontramos em execução nenhum plano que tivesse como objetivo a erradicação do Stegomyia fasciata [hoje o Aedes aegypti] do Brasil. Ao contrário, acreditavam na sua impossibilidade, devido à extensão territorial do País e à difusão do mosquito por todos os Estados e Territórios.”

Entre 1947 e 1955, com apoio da Fundação Rockefeller e da OPAS, o Brasil integrou um programa hemisférico para eliminar o Aedes aegypti. Ações como inspeção de portos, saneamento básico e pulverização de inseticidas resultaram na declaração de erradicação do mosquito em 1958.

O mosquito retornou ao Brasil em 1967, devido a falhas na vigilância pós-erradicação, urbanização acelerada e fluxo populacional de países onde o vetor persistia. Mais significativamente, isso aconteceu três anos após o golpe militar de 1964 apoiado pelos EUA, do qual fez parte um ataque brutal à saúde pública no Brasil.

O controle do Aedes aegypti para combater a febre amarela indiretamente preveniu surtos da dengue. A reintrodução do mosquito nas décadas seguintes, entretanto, permitiu a emergência da dengue como problema endêmico a partir dos anos 1980.

O sucesso temporário do século XX destaca a importância da cooperação internacional, da integração de ações, como saneamento, educação e vigilância, e da manutenção contínua de medidas preventivas, mesmo após a eliminação do vetor. Hoje, em 2025, com mais conhecimento e mais tecnologias – como o método Wolbachia, testes rápidos e a vacina – para combater a dengue, não há razão para acreditar que a erradicação não seja possível. Porém, tudo isso tem sido ignorado pelo governo Lula.

No ano passado, o governo Lula anunciou com alarde que começaria a imunizar a população brasileira contra a dengue. O MS tem adquirido lotes da vacina Qdenga desde o ano passado, mas a baixa capacidade de produção do laboratório Takeda, do Japão, obrigou a restrição da imunização apenas à população entre 10 e 14 anos e a 1.900 municípios com mais de cem mil habitantes em que a dengue tem surgido mais frequentemente nos últimos anos.

Sem campanhas informativas para alertar a população sobre os perigos da dengue, a campanha de vacinação têm sido um fracasso. Em São Paulo, apenas 11% da população-alvo recebeu a segunda dose – a meta do Ministério da Saúde é imunizar 90% do público-alvo. Uma nota pública da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) indicou que apenas 53% das doses distribuídas pelo Ministério da Saúde foram aplicadas, e 59% das pessoas que receberam a primeira dose não retornaram para a segunda.

Hoje, a crise de saúde pública se intersecta com a crise climática, que tem aumentado a intensidade e a frequência de eventos climáticos extremos e favorecido a proliferação do mosquito Aedes aegypti e da dengue. Segundo o infectologista Barbosa, no Brasil, “Tem duas coisas que estão acontecendo: chovendo e fazendo calor, ... fatores perfeitos para a proliferação do Aedes aegypti”. Ele continuou: “Há cinco anos, não falávamos de dengue no Rio Grande do Sul, muito menos em Santa Catarina,” os estados mais ao sul do Brasil.

A crise de dengue no Brasil no ano passado e a ameaça de um surto sem precedentes neste ano foram umas das razões da demissão da ministra da saúde, Nísia Trindade, por Lula. Os seus dois anos de gestão também ficaram marcados pela negligência criminosa em relação à COVID-19 e ataques duros aos servidores de hospitais públicos federais que têm realizado uma greve desde maio passado contra o que na prática significa a privatização deles.

Aliado a isso, o governo Lula tem submetido o orçamento da saúde e de outros direitos sociais a congelamentos e cortes seguidos para manter as metas de “déficit zero” e do “novo arcabouço fiscal”. Em 20 de fevereiro, o Globo informou que ele “precisará fazer um bloqueio de R$ 18,6 bilhões nos gastos do Orçamento de 2025 para garantir o cumprimento das regras fiscais neste ano”.

Neste início de terceiro ano de governo Lula, suas prioridades de classe estão claras. A proteção da vida humana foi consciente e criminosamente subordinada ao lucro corporativo. A única maneira de garantir uma saúde pública, universal e de qualidade é por meio do desenvolvimento de uma luta contra governos capitalistas como o de Lula como parte de uma luta independente pelo socialismo internacional.